julliana araújo aka bbwju
31 de outubro
Las DJs ~ Mulheres que nos fazem dançar
Em tempos de desconstrução e reformulação de ideias, conceitos e luta contra o patriarcado, não faz mais sentido que, até mesmo o protagonismo das pick ups, ainda seja orientado ou definido por gêneros. Exatamente por isso, fizemos uma série especial de entrevistas em que convidamos DJs que admiramos, para conversar sobre este e outros assuntos, mas especialmente começar a criar uma rede de divulgação e valorização do trabalho dessas mulheres incríveis que nos fazem dançar.
Julliana Araújo é designer de moda e de joias, curadora cultural e DJ responsável pelo projeto musical BBWJU, uma sigla criada por ela que significa black business woman. BBWJU foi uma das DJs residentes da festa Batekoo no Rio de Janeiro por dois anos e atualmente faz parte da Coletividade Namíbia de São Paulo. Ao lado dos amigos, ela se aventura nas ondas sonoras de sua banda de noise, a Getg, que mistura ruídos com poesia e sonoplastias experimentais.
Com influências de house, disco, funk e o que mais a fizer sentir, o som de Julliana é tão forte e engajado quanto suas opiniões, afinal a música é sua plataforma de expressão e fonte de autoconhecimento.
V ~ Como é a sua história com a música?
JA ~ Sempre fui muito próxima da musicalidade. Meu pai sempre ouviu muita música e me incentivou muito. A gente sempre tinha esse momento de ouvir música juntos e comentar sobre música, então a partir daí eu fui pensando sobre linguagem e identidade musical, já que eu era mais próxima das artes plásticas e design… Meu pai coleciona LPs, então nos meus aniversários eu sempre ganhei vinis, desde Milton Nascimento até The Police, Black Sabbath, além de ska e dub… A partir disso eu ia pesquisando mais sobre música e meus gostos.
V ~ Como você define seu som?
JA ~ Sendo muito sincera, eu tenho muita dificuldade de definir meu som. Mais do que um estilo musical, acho que meu som é um exercício pessoal, pois ele se dá a partir do “sentir”. Antes de tudo, é uma pesquisa pessoal sobre mim, de como eu estou me relacionando com meu corpo, com meu sentimentos. Então a minha pesquisa, ou seja, a minha música é muito introspectiva também. No momento em que eu comecei a entender isso, fiquei muito próxima da música dançante e fui chegando no hip hop vintage e R&B, mas fui resgatando algumas coisas da minha memória afetiva também, como o house, lo-fi e outros estilos da música eletrônica, além de começar a pesquisar sobre disco e deep house… Hoje em dia eu fico entre o house e o noise. Mas eu gosto muito da diáspora africana, principalmente do que está presente na América Central, Atlanta, Nova York e Detroit e, como tenho uma banda de noise, também curto experimentar as diferentes sonoplastias que habitam nos sons da cidade.
V ~ Conta um pouquinho mais da sua banda?
JA ~ A Getg sou eu, Lucas Guimarães, Gabriel Massan, Raiane Moraes e Gabriel Bretas. É uma banda de noise experimental. A gente toca e “destoca” também, ritma e arritma, cria e reconfigura os formatos de rítmicos. É uma experimentação estudada, mas que dá espaço pra improvisos. A gente pesquisa muito e se propõe a se olhar pra identificar as texturas e camadas que iremos acrescentar à nossa sonoridade. É uma experimentação feita a partir do nosso convívio, a partir de coisas com as quais estamos incomodados ou sensíveis e a partir dos ruídos do nosso entorno também.
V ~ Como você vê a presença das mulheres na noite, como DJs?
JA ~ Dentro de “mulheres”, existem várias mulheres. E algumas mulheres vão chegar antes de outras. Então se a gente cruzar esse discurso a partir da racialidade, a gente vai entender que a mulher branca vai chegar antes da mulher preta. Há vários vieses que a gente pode entender essa não-presença das mulheres: ela se dá por achar que a mulher só come uma vez ao ano; ou que só no Dia da Mulher é que a mulher trabalha; só no dia tal do mês é que se faz campanha pensando se a mulher é relevante; ou só quando há um tema que se diz feminista é que alguém vai olhar e perceber que existe uma necessidade de ser mulher. Mas mesmo uma pauta feminista não dá conta de abarcar todas as demandas das mulheres. Por isso não se deve unificar, mas preservar as diferenças e distinções dessas mulheres. Por que para eu, mulher preta, chegar, eu preciso olhar e saber que tenho oportunidades e demandas diferentes e não descartar essas diferenças, pois são essas mesmas diferenças que legitimam historicamente o quanto a estrutura privilegia a cota branca (que na minha opinião é a única cota que deveria acabar) nos espaços de construção de poder e herança do capital cultural – artístico na nossa sociedade capitalista, sim, mas que antes de tudo é racista. Eu não quero mais ter que me dizer artista negra. É só você olhar pra mim: eu sou o que sou… Eu quero poder só ser, por que eu já sou… Só quero poder exercer sem ter que discursar, ou dar aula para branquitude. Eu sou BBWJU uma artista sonora com uma pesquisa e curadoria musical que se propõem a ser relevantes para outras pessoas e para o mercado sonoro nacional e internacional.
V ~ Nessas diferentes cenas pelas quais você circula, você ainda vê muito preconceito, resistência, discriminação?
JA ~ Quando eu tocava hip hop, R&B e funk, ou algo que norteasse esses tipos de música de base e culturas ligadas à raça negra, não havia muito problema, não causava incômodo. Quando eu comecei a tocar house – mesmo house que tem origem na negritude de Detroit, como praticamente qualquer musicalidade presente nesse mundo tem origem negra -, eu senti que minha presença incomodava. Eu senti que muitas pessoas da cena house se olharam e rolou um “Putz, como assim? Onde você já tocou? Qual festa de música eletrônica você foi residente?” No funk eu não incomodava, por que o branco não estava no funk. Atualmente o branco ainda está chegando, mas o funk era um local que se esperava que eu ocupasse, pois é um gênero majoritariamente tocado por pessoas negras. Quando você ocupa um local que não esperam que você ocupe, é quando você vai entender como as estruturas elitistas brancas ainda querem te filtrar… É a hora que você vai entender como a mulher branca, elitizada, com sobrenome X ainda te oprime e ainda vai te restringir enquanto linguagem. Parece muito plausível e vital dizer que esse local não é seu, sendo que essa construção de música é nossa: é da cultura negra. O house e techno, são de origem negra, assim como o rock. Não adianta dizer que é universal. “Universal” é o mesmo que dizer “cultura urbana”: é não dizer nada. Dentro de uma cidade há várias cidades, então temos que dizer os nomes das coisas para que elas não se percam e virem só mais um movimento sem pertencimento, sem raízes. Façamos o house negro de novo, eu acredito muito nessa frase.
V ~ Como você entende que essa história pode começar a melhorar?
JA ~ Localizar todos como como iguais é a primeira violência que a sociedade comete. A segunda é reatualizar o local que uma mulher preta, de alguma forma, desnorteia a branquitude enquanto produção cultural, ou seja: como meu corpo produzindo um determinado conteúdo é menos valorizado que outro corpo, mesmo sendo o mesmo conteúdo. Por que o corpo negro incomoda tanto quando se está em um mesmo local de acesso intelectual de um corpo branco? Por que quando uma mulher negra está tocando na festa X, ok. Mas quando está no Novas Frequências ou num festival internacional, você sempre sente a tensão de “por que ela está ali?” Este é o próximo passo pra mim: poder pautar a minha liberdade enquanto corpo e produção de conteúdo, arte, moda e cultura, que é a música. É necessário desprender essa colonização, essas formas de aprisionamento do meu corpo enquanto articulação e deslocamento de espaço, que é ser mulher preta tocando. Não deveria ser necessário, ainda hoje, eu ter que me apresentar como mulher preta, e não como mulher, e não como um ser. Ou eu ainda precisar me localizar. Tudo isso pra mim é violência e, se eu sofro, quem tem que resolver não sou eu, é quem está ganhando com essa exclusão negra nos espaços culturais e de articulações de poderes que são de direitos nosso. Essa pergunta é para você, não pra mim.
~ Para dançar com a Julliana:
10/11 ~ BBWJU @ La Kermesse
15/11 ~ Getg @ Interface
16/11 ~ BBWJU @ MIMPI Festival
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