Na Manteiga
Por Rafael Bittencourt ~ 06 Agosto 2018
~ Segunda parte de uma série especial de matérias, onde damos um mergulho de cabeça nas novas ondas radiofônicas do Brasil e do mundo, compartilhando nossos achados, conversando com novos produtores e contando algumas histórias e infinitas possibilidades da nova era do rádio.
Desde 2015 a rádio Na Manteiga vem explorando a cena alternativa de São Paulo e, atualmente, já são os headliners e precursores desse movimento independente no Brasil. Mas essa investigação musical vem expandindo cada vez mais, seja com participação em festivais de peso como as duas últimas edições do festival de música eletrônica Dekmantel Brasil, com os showcases por diferentes cantos do país (e de fora), ou pelo fato de ter nomes super importantes e influentes da música e da noite, como apresentadores residentes da rádio, como Augusto Olivani (aka Trepanado) da festa Selvagem e sua “Rádio Além”, e DJ Magal que recentemente estreou o “Radiografia” celebrando seus 35 anos de carreira. Sem contar as participações especiais de Laurent Garnier, Dengue Dengue Dengue, Nicola Cruz, Esa Williams, DJ Hell, Tata Ogan, Flora Matos, entre muitos e muitos outros DJs, artistas, “vinileiros”, produtores, e seletores musicais.
Todo esse time de peso que já chegou a cerca de 200 programas deixa bem claro o por quê a Na Manteiga ganhou o prêmio de melhor rádio da América Central e América do Sul este ano do Mixcloud, plataforma onde os programas são todos armazenados, caso o ouvinte não consiga acompanhar a transmissão on line pelo Facebook.
Atualmente a rádio é gerida por três sócios: Caio Taborda, do selo musical e party collective Gop Tun e responsável pelo Dekmantel Brasil; Marcel Buainain, publicitário que atualmente comanda a base da rádio em Berlim, e o também publicitário e apaixonado por música, Thiago Arantes, com quem trocamos uma ideia sobre a Na Manteiga, o atual boom das rádios independentes e, claro, música.
~ Para ler ouvindo os TOP10 melhores programas que a turma do Na Manteiga selecionou a dedo para o Mixcloud, em comemoração ao prêmio recebido ~
V ~ Thiago, como essa história de fazer rádio surgiu na vida de vocês?
TA ~ Nós três sempre fomos muito conectados com música e estávamos sempre reunidos na casa de alguém ouvindo rádios gringas, tanto Boiler Room, como a Red Light Radio, NTS, e mandando um pro outro os sets que rolavam, e a gente sempre se perguntou “por quê não tem um negócio desses no Brasil?”
Tinha tanta coisa acontecendo aqui e, mesmo as coisas que vinham de fora têm um olhar muito particular do Brasileiro pra fazer, mas não existia ninguém que estava criando conteúdo audiovisual, documentando e dando voz para esses artistas locais que têm um puta potencial. Daí em diante foi meio natural e então começamos a estudar formas de fazer. Alugamos um espaço na Galeria Ouro Fino e montamos um estúdio lá dentro, onde a gente gravava os vídeos, editava e subia na internet. Com o tempo a rádio foi mudando um pouquinho e, com a explosão do live do Facebook, hoje baseamos as transmissões lá, e subimos os áudios no Mixcloud.
V ~ E por quê do nome “Na Manteiga”?
TA ~ O nome é uma expressão de algo acontece de uma forma macia, smooth… E é um termo um pouco usado pelos “vinileiros” e quem gosta da cultura do vinil. Achamos bem interessante, por que queríamos um nome bem brasileiro pra rádio. A gente também queria sair dessa mesmice de ficar só importando coisas, apesar da rádio ter conteúdo em inglês até muito pouco tempo atrás, por que a gente estava se projetando para uma audiência global… Mas resolvemos assumir cada vez mais a identidade brasileira e escrever em português mesmo.
V ~ Alguma dessas rádios gringas inspirou mais a Na Manteiga?
TA ~ A Red Light Radio foi, talvez, nossa inspiração-mor, até pela diversidade de som e a maneira como eles abordam a música de uma maneira mais eclética. Decidimos fazer uma coisa parecida, por que a cena de São Paulo já tinha tanta coisa legal acontecendo, tanto artista bom, e acho que hoje tem até mais… Já havia outras rádios fazendo esse trabalho, mas era algo muito de nicho, focando muito em uma cena específica, mas ninguém que estivesse um olhar mais eclético sobre a música, sem muito se prender a um gênero ou estilo. Foi quando a gente viu uma puta oportunidade de ter um olhar eclético sobre o que estava acontecendo e trabalhar cenas que estavam ainda meio sem voz em termos de documentação de conteúdo…
V ~ É inegável que houve um crescimento desse movimentos nos últimos tempos com o boom do streaming no Brasil… Como você vê isso?
TA ~ Depois que o Manteiga chegou, tiveram mais rádios que começaram a fazer isso e o Spotify está bombando cada vez mais, então em épocas de streaming, essas rádios e serviços começam a aparecer e ganhar mais força, mas a gente vê tudo isso com um olhar muito positivo.
Quando mais rádios, melhor. Assim a cena ganha mais força, os artistas são mais conhecidos e isso conversa com as festas, e com toda a cultura de música que está acontecendo. E São Paulo é um lugar incrível pra isso! O Brasil é um lugar incrível… Mas São Paulo por si só já tem tanta coisa acontecendo…
Essa explosão só tem benefícios tanto pros artistas quanto para as gravadoras, para as lojas de discos, para as festas que também estão fazendo movimentos bem legais em cima desses nichos. Acho que o rádio é só mais um elemento que faz com que toda a cena ganhe forca, ganhe voz e se posicione cada vez mais como um movimento cultural, utilizando a internet como meio de difusão.
Sempre vai ter um espaço pra quem vai estar criando conteúdo que tenha uma visão particular, um conceito por trás, como o trabalho que a gente está tentando fazer, de dar um olhar específico sobre as cenas e tentar passar desde o techno, pro reggae, pro rap, pros seletores de música brasileira, pra galera de beats… Contando que você tinha um olhar único, acho todo esse boom do streaming bem positivo, por que sempre tem espaço pra quem está fazendo alguma coisa autêntica.
V ~ A que você atribui esse movimento?
TA ~ Acho que esse movimento se dá por que, em termos de tecnologia, está cada vez mais fácil fazer qualquer coisa que antigamente era complexo. Até no cinema também, que você precisava de um puta equipamento, mas hoje você faz um filme no celular se você for inventivo… E as rádios passaram por um movimento parecido, tanto pelas plataformas de distribuição de streaming, ou as câmeras que estão cada vez mais baratas. Então, acho que isso deu uma certa força para tudo acontecer.
Por outro lado, acho que é uma necessidade de prolongar e amplificar os ramos da experiência musical que surge nas festas, que passa pelos seletores, pela pesquisa pelas lojas de discos, e transformar tudo isso em conteúdo, expandir e diversificar e fazer com que a visão musical de cada um chegue a cada vez mais gente.
V ~ Você vê alguma semelhança entre rádios brasileiras e as gringas?
TA ~ Acho que as rádios gringas têm muita semelhanças com as brasileiras sim. Tem as rádios que são super nichadas e as que têm uma visão um pouco mais eclética. Mas ao mesmo tempo, acho que nós brasileiros temos uma identidade cultural tão forte, em seja lá o que a gente fizer, que a gente acaba tendo uma característica muito particular na maneira como a gente faz. Tem um antropólogo que fala que o Brasil é o estômago do mundo, por que a gente pega tudo de fora, digere e faz do nosso jeito, meio como um manifesto antropofágico… Há uma certa liberdade no trabalho que está sendo feito nas rádios do Brasil, a gente acaba fazendo de uma forma um pouco diferente. E acho que pelos artistas que a gente tem, por essa visão temos da música e pela relação que o Brasil tem com a música africana, além dessa explosão da música brasileira aconteceu nos últimos anos – que muita gente não ouvia música brasileira começou a ouvir. Isso também influenciou as rádios e os artistas lá de fora.
O Brasil é um lugar incrível pra fazer qualquer coisa em relação à música, seja a música brasileira antiga, como a cena de techno, por exemplo, que está explodindo em São Paulo. Os artistas têm uma visão muito particular e uma consciência muito grande sobre a música. Acho que isso é um ponto que torna o Brasil um lugar muito diferente… Toda essa diversidade que temos aqui.
E acho que um dos grandes trunfos do Manteiga é exatamente conseguir não ter preconceito entre estilos sonoros, trabalhar esse ecletismo de uma maneira positiva, como uma identidade cultural de São Paulo. Acho que é um ponto super positivo que a gente se esforça pra trabalhar e pra dar visão para os artistas.
V ~ Quem são esses artistas? Como vocês chegam até eles?
TA ~ Isso é um trabalho progressivo e exponencial que a gente foi cultivando. Lógico que a gente já conhecia uma parte da cena musical e da noite de São Paulo, mas é um trabalho que funciona de uma maneira muito colaborativa. Então, isso foi fazendo com que cada vez mais a gente encontrasse artistas legais pro Manteiga. E acho que é incrível como cada vez aparece um cara que a gente não conhecia, ou que estava esquecido, ou que acabou de começar a ter uma maturidade no trabalho, então é um movimento constante de aparecerem artistas legais.
Mas temos algumas pessoas-chave que nos ajudam muito a trazer outros artistas, que a gente brinca que são os embaixadores da rádio, que são pessoas da cena que sempre aparecem com alguém novo. É muito uma dinâmica de rede… Alguém toca na rádio que diz “conheço alguém muito legal”, a gente escuta, avalia, passa pelo nosso crivo e em cima disso a gente chama o cara pra fazer um programa. E esse cara apresenta outro cara e as coisas vão se movimentando…
V ~ Mas todo mundo é DJ ou músico profissional?
TA ~ Temos exemplos de caras que não são DJs, são colecionadores de discos, não tem familiaridade com toda a parafernália técnica do DJ, mas a gente fala “não, cara, tudo bem, vai lá e coloca uma música depois da outra, o que importa é o conteúdo que você gerar”. Aí você vê donos de lojas de discos, que são pessoas que influenciam os DJs e artistas, mas que nunca tiveram espaço pra mostrar o som deles e a visão deles de música. Então, eu acho que abrir o leque pra pessoas que têm pontos de vista diferenciado e particular sobre música, dar voz pra eles, acaba fazendo com que aqui no Brasil seja um lugar muito fértil pra poder trabalhar os artistas e criar conteúdo de uma maneira muito singular.
V ~ Vocês influenciam a curadoria dos artistas de alguma forma?
TA ~ A gente nunca influencia o que o artista vai tocar. Esse é um dos mandamentos do Manteiga. Ele tem liberdade total de tocar o que ele quiser. É lógico que a rádio provoca um pouco os DJs a sair da zona de conforto. A gente teve, por exemplo, um DJ de techno que fez um set de rap, por que o cara tinha um monte de discos de rap em casa, ama rap, mas é visto como DJ de house e techno e não tinha onde tocar isso, mas queria mostrar um pouco da visão dele sobre esse gênero. Não influenciamos o processo criativo do cara, até por que ele é artista e… Artista é artista, né? Acho que isso é importante pra gente e pra ter um bom conteúdo.
V ~ Imagino que isso valha principalmente para os programas…
TA ~ A gente selecionou artistas que confiamos e que gostamos do que estão fazendo, pra que eles tenham liberdade pra convidar quem quiserem e autonomia sobre a curadoria de seus programas. Por exemplo, o Augusto (aka Trepanado) do Selvagem tem um programa que ele gostaria de fazer com late night songs, com músicas com uma pegada meio Alpha FM, que fazem parte de uma memória afetiva dele… E aí ele criou o programa Rádio Além. Agora a gente está começando a fazer também um programa direto da Patuá Discos, com o Paulão junto com artistas que passam por lá na sexta-feira… Tem o programa mensal do Goma Gringa, que é um selo brasileiro super legal, o Som da Selva, da Odara Kadiegi que explora um pouco esses ritmos afro-brasileiros e tropicais e sempre tem convidados. Lançamos recentemente também o Radiografia do DJ Magal, que é uma figura simbólica da cena, além o Discopédia também…
V ~ E quem está do outro lado? Quem é o público da Na Manteiga?
TA ~ Hoje nosso público não está só no Brasil, está em vários lugares, e com o prêmio que ganhamos este ano do Mixcloud de Melhor Rádio Independente da América Central e do Sul, também espero que dê mais uma projeção global, mas em todo caso, o Manteiga é uma rádio pra brasileiros, afinal, o que a gente quer fazer é dar uma certa visão das cenas que estão acontecendo por aqui.
É um trabalho de formiguinha que a gente vem fazendo há alguns anos, que não é fácil, por que trabalhar com música é sempre um desafio, mas acho que esses três anos foram bem interessantes pra rádio. A gente está caminhando bastante e expandindo a maneira como a gente pode trabalhar e as possibilidades que existem pra gente documentar e transmitir o que está acontecendo hoje no Brasil.
~ Pra Mergulhar Na Manteiga:
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~ Leia a primeira parte do nosso especial