Mergulho no

Invisível com Vincent Moon

Por Rafael Bittencourt ~ 28 Junho 2018


 

Híbridos: Os Espíritos do Brasil ~ Vincent Moon e Priscilla Telmon

 

O Brasil é um continente, mas nosso olhar foi treinado desde o berço para ser sempre orientado milimetricamente ao exterior, ao estrangeiro, fazendo com que nos esqueçamos ou que simplesmente não demos atenção e valor às raízes pré-coloniais que ainda resistem por aqui. O que não sabíamos, e que os artistas franceses Vincent Moon e Priscilla Telmon revelam no projeto “Híbridos: Os Espíritos do Brasil”, com maestria e poesia, é que o estrangeiro também somos nós.

 

Vincent Moon é o pseudônimo de Mathieu Saura, cineasta parisiense que ficou conhecido por seus vídeos musicais no site La Blogothéque, em que filmou intimamente alguns importantes artistas independentes de todo o mundo como Bon Iver em um apartamento em Montmartre, Beirut passeando pelo Brooklyn, Phoenix na Torre Eiffel, Grizzly Bear em um chuveiro, os islandeses do Sigur Rós em um pequeno café em Paris, além de R.E.M., Mumford & Sons, Tom Jones, Arcade Fire, Onda Vaga e muitos outros. Algum tempo depois, em um projeto mais autoral e aventureiro, o “Petit Planètes” – que atualmente também nome de sua produtora –, Vincent viajou o mundo com uma mochila nas costas e uma câmera na mão durante cinco anos em busca de diferentes sons pelo mundo, sejam de rituais, de músicos, ou da própria natureza.

 

Mas foi em 2014, ao lado de Priscilla Telmon, escritora, fotógrafa, cineasta, membro da Sociedade de Exploradores Franceses, que nasceu o “Híbridos: Os Espíritos do Brasil”, uma jornada mística, cultural e musical por 60 rituais espirituais por todo o país, retratando a vivência de cada um deles por meio de fotografias, filmes, músicas e cantos e entrevistas.

 

Crédito: Camille Bokhobza

 

Assim como a própria transcendência espiritual, é difícil não se impactar ou se encantar com a riqueza de “Híbridos”, um projeto ambicioso que revela as muitas ancestralidades e os amplo espectro da espiritualidade brasileira, que foi minuciosamente organizado pelos artistas em 12 categorias que se inter-relacionam: Afro, Europeu, Indígena, Cidade, Montanha, Floresta, Mar, Cristãos, Transe, Cura, Procissão, Médiuns e Plantas.

 

Conversamos com Vincent Moon um pouco mais a fundo sobre o projeto e mergulhamos em seu olhar sobre espiritualidade, expansão da consciência, quebra de paradigmas, união, música e diferentes culturas.

 


 

V ~ Seu trabalho é bastante conhecido pela música e diferentes culturas. De onde vem o desejo de explorar e documentar a espiritualidade?

VM ~ Faz muitos anos que estou pesquisando ao redor do mundo a música e o uso da música adentro da nossa sociedade, por que eu tive desejo de me aproximar mais e mais da ‘ritualística’, que atualmente é denominada ‘espiritualidade’. Eu não cresci com a espiritualidade na minha vida, quando cresci em Paris. Foi uma cultura bem racional, bem francesa. Então, encontrar a espiritualidade e viver a experiência da espiritualidade, que é uma maneira de dizer que esse não é um estudo antropológico e etnográfico, longe de mim. É muito mais um desejo de me aproximar, de experimentar, pessoalmente através de experiências profundas e de me aproximar do invisível.

 

Híbridos: Os Espíritos do Brasil ~ Vincent Moon e Priscilla Telmon

 

V ~ Como se deu essa aproximação com esse universo? Como foi o processo de construção do projeto?

VM ~ Me aproximar do invisível foi uma coisa que encontrei muito quando encontrei a Priscila, que já teve um desenvolvimento mais forte com a espiritualidade, em outras partes do mundo. Ela teve ligação com a cultura tibetana, por exemplo.

 

Pouco a pouco surgiu o desejo de construir um projeto sobre a presença da espiritualidade dentro da nossa sociedade, mas por que achamos simplesmente que a espiritualidade, ou a experiência espiritual e ritualística, é o que pode trazer uma maior consciência. O grande problema que temos, mais do que tudo, em nossa sociedade tão fraca, tão doida hoje em dia, é a falta de consciência, simplesmente. Bom, não é simples, por que não tem nada simples hoje em dia. Mas para resumir todas essas crises ecológicas, econômicas, mentais, tudo o que está surgindo de muito ruim dentro da sociedade brasileira e ao redor do mundo – e realmente isso está acontecendo em muitas partes do mundo – tem a ver com a falta de consciência. Por que simplesmente não estamos educando nossa sociedade para ter consciência. Especificamente por que há uma falta de experiências espirituais.

 

Então para nós, fazer esse filme não foi só tentar documentar a diversidade da experiência espiritual brasileira sobre o invisível, mas foi também tentar criar um projeto espiritual mesmo. Uma experiência espiritual em si, o que chamamos de trans-cinema. Não é só um projeto trans-mídia que usa várias ferramentas e vários tipos de imagens hoje em dia. Para nós é um desejo também de entrar em transe. Foi disso, com essas primeiras ideias que iniciamos o projeto quatro anos atrás no Brasil sem saber o que ia virar o projeto. Virou uma coisa bem louca, bem intensa (risos).

 

Híbridos: Os Espíritos do Brasil ~ Vincent Moon e Priscilla Telmon

 

V ~ Depois de toda essa longa jornada, você consegue ter uma definição de espiritualidade? É possível definir a Espiritualidade?

VM ~ Para mim realmente a experiência da espiritualidade, como disse, é uma experiência da consciência. Para mim o grande desafio do ser humano é pesquisar a realidade. Pesquisar sobre o que é realidade de verdade: por que estamos aqui, para quê, aonde queremos ir, como queremos evoluir? Essas são as grandes perguntas da humanidade e da natureza! São as grandes perguntas da nossa realidade. Pesquisar a realidade significa, para mim, ter experiências espirituais. Mergulhar no invisível. Pesquisar pessoalmente através talvez de várias ferramentas, como a nossa ferramenta, que é o cinema. Mas acho que ao falar de cinema talvez estejamos também misturando vários tipos e gêneros, por que não acreditamos em separação. Eu não acredito que tenha qualquer separação entre cinema, música, dança. São expressões diversas que podem se unir e que devem se unir hoje em dia. Nosso desejo é fazer união, criar essa união possível acima de tudo o que está acontecendo hoje em dia.

 

Então, o que é espiritualidade: é busca. É busca da realidade. É para entender a ligação. É união. É encontrar união através dos rituais. União de verdade! Integrar profundamente a sensação de que somos parte de tudo. Entender e integrar tudo isso através da ritualística. É fácil ler livros, é fácil ouvir um guru falar, talvez. Mas o que precisamos muito mais é sair da nossa zona de conforto e experimentar com nossos próprios corpos essa união. Experimentar essa união significa então, quebrar todos os paradigmas. A maioria dos paradigmas da nossa sociedade está baseada na divisão. Então sair da divisão é encontrar que, por exemplo, a identidade não existe per se. Ela existe dentro de uma artificialidade da realidade, de alguma maneira. É muito importante! Acho realmente que a espiritualidade é o que precisamos hoje em dia: de uma maior consciência geral sobre o que estamos fazendo juntos.

 

Híbridos: Os Espíritos do Brasil ~ Vincent Moon e Priscilla Telmon

 

V ~ E por que justamente a Espiritualidade brasileira?

VM ~ Nesse momento, a espiritualidade brasileira é extremamente rica. Talvez a diferença que você vai encontrar no Brasil, no lado espiritual, em comparação a outros países é uma maior diversidade, mas também uma maior possibilidade de experimentação. Acho que isso é extremamente importante: entender que tudo está em mudança sem parar. Nada está parando, tudo está evoluindo desde o início, e isso realmente é uma coisa maravilhosa que você encontra através de muitos rituais brasileiros, por exemplo, a umbanda. A história da umbanda, o que é a umbanda, suas misturas, é fantástico! O Santo Daime também! É poderoso! E é muito, muito artístico.

 

Explorar tudo isso é encontrar que através dos rituais estão as maiores criações e as maiores expressões artísticas do ser humano, acima de tudo. Acho que isso é muito importante! Temos uma sociedade que valoriza mais ou menos as expressões artísticas e desvaloriza a espiritualidade. Estou falando, talvez, da minha própria cultura… Acho que isso não faz sentido nenhum. Por que tudo está junto, precisamos entender que espiritualidade é arte. A espiritualidade é a maior expressão ou forma de arte.

 

Híbridos: Os Espíritos do Brasil ~ Vincent Moon e Priscilla Telmon

 

V ~ Há um sentido político em tudo isso?

VM ~ Há a necessidade dos artistas de repensar as línguas de luta. Precisamos muito de lutar pela diversidade do mundo, claro. Precisamos muito de celebrar as diversidades e as minorias. O que está acontecendo nessas lutas no Brasil é talvez através de uma coisa que chamamos de “lugar da fala”. Mas também precisamos entender que se vamos só trabalhar nesse nível, não vamos a lugar nenhum. Por que assim estamos nos dividindo de novo, estamos criando divisões, isso é perigoso, precisamos trabalhar juntos.

 

Híbridos: Os Espíritos do Brasil ~ Vincent Moon e Priscilla Telmon

 

V ~ Voltando para a música, que é como tudo começou… Como você vê a relação da música com a espiritualidade?

VM ~ O que é música? Onde você coloca o limite do que é música e o que é barulho; o que é som e o que é silêncio? Podemos dizer que tudo é música. Para mim tudo pode virar música. Precisamos trabalhar nossa consciência para isso. Mas também entender que música é vibração. Cientificamente tudo é vibração, então a realidade para mim é vibração. Tudo é vibração. Tudo é música de alguma maneira. Então a ligação entre música e ritualística é extremamente forte, claro! Por que é através da música que você vai criar esse relacionamento com o invisível: tudo vem da música, tudo vem dessa relação. Acho que a música existe por que tivemos que criar uma relação com o invisível, desde os tempos mais antigos. Criou-se a música, antes das palavras. Eu acredito muito nisso. Não só a música humana! Os pássaros estão cantando sem parar e isso é uma coisa incrível, de uma beleza superior! Acho então que música está em tudo. Então para mim foi uma jornada maravilhosa encontrar isso tudo, sair da minha zona de conforto também. De estar em Paris e sair para filmar todos esses músicos maravilhosos que estavam fazendo música rock, pop, indie, tudo e entender que na verdade esses gêneros não existem, foram criados em algum momento também para uma necessidade do mercado. Então acho que sair disso tudo e encontrar música no sagrado, é uma coisa tão rica, que não tem fim!

 

Híbridos: Os Espíritos do Brasil ~ Vincent Moon e Priscilla Telmon

 

V ~ Fazer o Híbridos mudou sua visão de mundo?

VM ~ Foi uma grande mudança da nossa realidade, sobre o que estamos fazendo aqui. Não tem fim essa busca, claro. Para nós foi só início. O desejo de fazer o Híbridos, um projeto tão aberto, que tem vários formatos – o longa-metragem, o cinema ao vivo, instalações multi-telas em museus e, talvez o mais importante para nós, o website, que tem licença Creative Commons, com tudo livre e aberto. Estamos fazendo isso realmente por que acreditamos na necessidade de sair da propriedade e na necessidade de compartilhar sem parar, de usar as ferramentas digitais na integralidade delas. Acho que o Híbridos foi nosso desejo de criar uma coisa coerente do começo ao fim: da maneira de pensar o projeto, de improvisar, depois de produzir tudo e lançar tudo aberto. Abrir as portas! Abrir tudo! Esse é nosso desejo. Isso aqui no Brasil é muito importante: especialmente esses dias. Abrir! Abraçar.

 

Híbridos: Os Espíritos do Brasil ~ Vincent Moon e Priscilla Telmon