Os livros lidos, rabiscados e fotografados de Esteban Feune de Colombi
Por Rafael Bittencourt com colaboração de Camila Mohr ~ 18 Junho 2018
Um livro em uma estante é sempre um gatilho para uma boa conversa ou, no mínimo, um convite a folheá-lo. Este processo de descoberta é como adentrar em universos literários expostos ou esquecidos em prateleiras, mesas de centro ou de cabeceira, onde também podem ter sido deixados coisas tão íntimas e pessoais quanto os próprios pensamentos que aquelas páginas convidaram à mente.
A relação que cada leitor tem com seus livros pode ser bastante curiosa e, por quê não, um claro reflexo da personalidade de cada um. Partindo do clichê de que “você é o que você lê”, o artista portenho Esteban Feune de Colombi foi além e decidiu registrar “você é como você lê”.
Estebán não conheceu seu avô materno, mas foi folheando “Obras Completas de Oliverio Girondo”, livro que ele leu quando estava enfermo já no final de sua vida, que Estebán que encontrou uma mensagem escrita à lápis direcionada para autor daqueles poemas e seu amigo pessoal, que dizia: “en cualquier momento nos encontramos allá arriba” (Em qualquer momento nos encontramos lá em cima). Sua reação imediata foi de fotografar a frase com medo que se apagassem com o passar do tempo e das páginas.
Além de um dos protagonistas dos filmes “Vermelho Russo” (2017) e “Além da Estrada” (2011), ambos dirigidos pelo carioca Charly Braun, Estebán também é fotógrafo, editor e escritor e logo foi se envolvendo também com histórias semelhantes à mensagem de seu avô para o amigo poeta, como ele conta:
“Comecei a tirar fotos de livros nas casas de escritores amigos. Mas fotos de livros que haviam intervenções de qualquer tipo, isto é, aquelas que mostravam que tinham sido lidos e que tinham sinais da passagem do tempo. Depois um escritor me levou a um poeta, um poeta a um filósofo…”
Todo o processo chegou a 200 fotografias de livros lidos, rabiscados, dobrados, desenhados, rasgados, escritos, questionados, mordidos (!) e, inclusive, aqueles que pareciam intactos. O resultado foi a exposição “Leídos” na Biblioteca Nacional Mariano Moreno, em Buenos Aires, entre Julho e Agosto de 2014, que além os registros fotográficos, também trouxe crônicas sobre as visitas às casas destes escritores-leitores.
“A verdade é que foi um processo incrível de trabalho, somado à possibilidade intrigante de conhecer as casas daqueles que escrevem. De alguma forma, eles foram todos memoráveis, embora houvesse hits: um livro mordido por um cão, um livro queimado por uma ex-namorada, um livro marcado pelo avô e pelo pai de uma leitora…”, relata.
Os livros para Estebán vão muito além do título, da capa, do autor, ou editora: eles representam uma história que questiona e desafia a linearidade do tempo.
“Qualquer livro é uma forma de tempo, com seus cheiros, suas formas e suas deformações, o seu peso, os objetos armazenados dentro, anotações, dobras… tudo isso se transforma, mais ainda hoje em dia, num fetiche grande e quase anacrônico”, conclui o artista.
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Abaixo, algumas crônicas e fotografias de Leídos que Estebán gentilmente compartilhou conosco.
Beatriz Sarlo
Epígrafe: Victoria Ocampo, Autobiografía II. El imperio insular. Buenos Aires, Ediciones Revista Sur, 1983.
“Ela se move em seu estúdio como um peixe na água. Bebe mate, fuma com uma piteira, procura um livro, senta-se, cruza as pernas como Charly García, levanta-se, procura outro livro. Caminha pela sua biblioteca com a sabedoria de quem está caminhando pela estrada de volta para casa, com as mãos nos bolsos. Ele me pergunta como vai se chamar a mostra e eu explico a ela que momentaneamente o nome que escolhi – e depois foi confirmado – é “Leídos”. Também lhe digo que, conversando com Chitarroni, ocorreu-nos que o título poderia ser o mesmo, mas pronunciado “leidos”, sem acento, para se referir a quem, em outra época, era visto como culto ou instruído. Ela me sugere, o que eu aprecio, que essa combinação pode ter o efeito oposto, então marcha à ré.”
Federico Andahazi
Epígrafe: Bela R. Andahazi Kasnya, Edades y temporadas. Buenos Aires, Ediciones del Tiempo, 1966.
“Chego com a minha scooter, estaciono na calçada e vislumbro, no pátio da entrada, um Honda Goldwing, que me soa familiar. Federico confirma que ele emprestou para um amigo que, oh coincidência, fazia boxe na mesma academia que eu. Corta para a sala de jantar, em um de seus cantos uma majestosa Indian 741 B da Segunda Guerra – com uma marcha de velocidades, como um carro! – que está sendo restaurada. Não deixamos o fascinante universo das motocicletas até que a esposa do meu anfitrião, a caminho da porta de saída, nos diga com discernimento que estamos falando no escuro. Quando as luzes se acendem, o único livro fotografado mostra suas credenciais, que me deixam sem palavras: relatos de um hotel parisiense, desenhos, programas manuais e guardanapos manchados por Bela, o pai do famoso escritor, que não soube que seu pai – psicanalista por profissão, como ele – escrevia até encontrar esse gordo exemplar na biblioteca de seu avô materno.”
Luis Chitarroni
Epígrafe: Julián Ríos, Larva. Barcelona, Llibres del Mall, 1983.
“Com Luis (também conhecido como Ludwig, Louis, Lewis, Luiz, Luigi, Lluís, Luisinho, Ludoviko, Lois, Luj, Lodewijk, Lajos, Lubis, Siul, Savy, Monsieur Teste, Yorick, Dom Pérignon, Pnin, señor Pronto, Hugonote, Van Lüüd, Calmuco, The Man Who Was Another Day Except Today, Malamud con barba, Lytton.. até virar o outro em um canto de si mesmo, mero apelido) nós tagarelamos literal e lateralmente de tudo. Então, como alguém que não quer a coisa, mas querendo com devoção franciscana, uma tarde esquecível me fala sobre A Humument, o trabalho quimérico do artista inglês Tom Philips, sem que eu perceba – na ilusão de, por sorte, não saber nem compreender até agora, neste momento, a escrita – que me mostra, num mar de lençóis costurados, colados ou afivelados, e em que filas como um anfíbio, a mesma coisa que fez com o palimpsesto de Julián Ríos.”
María Negroni
Epígrafes: Marguerite Yourcenar, Memorias de Adriano. Buenos Aires, Sudamericana, 1980.
“Aqui mesmo morava Alberto Girri, mas María só descobriu quando assinou a escritura. O apartamento adjacente já foi alugado pelo pintor Remo Bianchedi, que costumava acompanhar o autor de Cuestiones y razones (Questões e Razões) para brindar à Plaza San Martín. Bem na frente, do outro lado da rua, mora Arturo Carrera: algo dessa genealogia edilício-poética está por trás dessa casa, que me parece londrina e atemporal, como se fosse um filme de Joseph Losey.”
Pablo Katchadjian
Epígrafe: Ernest Fenollosa y Ezra Pound, El carácter de la escritura china como medio poético. Madrid, Visor, 2002.
“Os bigodes de Pablo abrem a porta que dá para a rua com a eficiência peculiar com que os bigodes abrem as portas que levam à rua: bem abertos, contemplando e com muito mais destreza do que as costeletas espessas ou os cavanhaques obsessivos. Uma vez em cima, o bigode dialoga com uma barba mal cortada que está consertando uma perda de gás na cozinha e depois, sem demora, para o trabalho – aqui tudo parece rápido, até a lentidão – e a foto de um saquinho de chá que se projeta da cópia de Fenollosa y Pound sobre uma mesa camuflada compensa minhas expectativas (e minha predisposição para imediatismo). Os bigodes e eu viajamos de elevador até o térreo e, tchau, adeus. Vem o Braulio Arenas à ponta do meu nariz: “Um pouco mais rápido, pequeno elevador. Desce com as memórias deste singular grupo de afogados / Ninguém poderá achar ninguém”.”
Mais sobre Estebán: http://www.tatucho.com